aquele adeus não pude dar

íris
18 min readAug 5, 2022

Vi meu planeta natal morrer em 2.8 segundos. Tinha acabado de sair da câmara criogênica, meus músculos doloridos desenferrujavam e meu ouvido interno mal funcionava. Vi com meus próprios olhos aquele planetinha murchar, enrugado e cadavérico, ficando marrom como uma maçã apodrecendo em um lapso temporal hiperacelerado. Vi seu campo magnético ser revertido, o nível do mar subir e subir e o gelo derreter e o que era deserto virar floresta tropical, só pra ser destruído por erupções de super vulcões, e a terra erodir e renascer em novas cadeias de ilhas. Eu estava há cerca de um ano em minha jornada sem volta, verificando o monitor de propulsão central da minha nave de última geração (carinhosamente chamada de “Lampião ao Vento Frio”), enquanto ela acelerava constante e continuamente rumo ao vão entre as galáxias, quando testemunhei tudo o que já conheci, cada vestígio de nossa história, cada nome, cada lugar, cada cultura, cada laço e briga e estranhamento que lá nasceu, aparentemente desaparecer e virar pó de estrelas.

Mesmo que a maioria das pessoas que eu conhecia tenha morrido centenas de milhões de anos antes disso (para eles), e meses atrás (para mim), aquela morte ainda era um soco no estômago. Mesmo que todos tenham vivido até quase duzentos anos, mesmo que tenham aproveitado suas experiências ao máximo, mesmo que eles tenham saído pra trabalhar um dia, cansados e com fone de ouvido no máximo, só pra no final da noite se tocarem que não tinham mais pensado em mim, a morte ainda era a morte. Aquele ponto azul empalidecido e modesto e único era minha lembrança vestigial deles. Ver algo tão belo, grande e brilhante sumir assim sem grito, sem espernear, sem uma declaração póstuma mordaz e melancólica ou inteligente, que fizesse fazer sentido essa bagunça… É uma pena, um desperdício. Foi sereno, seguindo o curso natural da matéria. Porém, tanto tempo se passou que talvez perder apenas um planeta inteiro já não importa quando o universo começa a se definhar. E eu aspirava dar de cara com a magnum opus da entropia.

Antes de qualquer tecnologia de pontes, antes de qualquer sonho impossível de FTL, havia esse protótipo de viagem interestelar que dirijo agora, a Lampião. Uma ramjet com propulsão de fusão nuclear de alta eficiência baseado em matéria-antimatéria. Ou seja, um propulsor enorme, forte e idiota. Se a solidão não me enlouquecer até a morte, o arrasto de ventos estelares, campos magnéticos e radiação cósmica de fundo em micro-ondas vai. A Lampião é basicamente um caixão de funeral experimental luxuoso e imbecil.

Pelo menos tenho a companhia de uma inteligência artificial pouco comunicativa implantada no meu cérebro, a Matrix Adaptável de Reconhecimento e Inteligência-Simulada em Trajetórias Espaciais Próximas à Velocidade da Luz (MARI-TEPVL) da Lampião. Mesmo assim, sem a MARI, como a apelidei por conveniência, eu já teria perdido a sanidade e esse foguete aqui já teria esbarrado em algum planeta no meio do caminho e, bom… Impactos relativisticamente velozes assim tendem a ser meio dramáticos.

É simples, quando você para pra pensar: Quanto mais rápida a velocidade relativa, maior será a dilatação do tempo entre um referencial inercial e outro em movimento. É o básico da relatividade especial. Dilatação temporal é o produto comum da gravidade. Geralmente, ela ocorre em frações de frações de frações de um segundo; em objetos que transitam entre valores gravitacionais relativamente diferentes. No máximo, ela custa alguns minutos. Mas… para velocidades suficientemente altas, bem como corpos suficientemente massivos, o efeito da dilatação temporal é bem mais custoso.

Um conceito conhecido como Viagem Espacial sob Aceleração Constante. O nome não é tão criativo, mas dá pra entender. Esse modo de viagem espacial requer um sistema de propulsão que pode operar continuamente, com uma aceleração constante, tipo a 1 g padrão — uma aceleração semelhante à experimentada na superfície da Terra, cerca de 9,8 m/s² — sempre queimando, sempre empurrando, sempre gerando propulsão, tanto que pode atingir velocidades relativísticas, ou seja, alguma fração ínfima próxima da velocidade da luz. Em outras palavras, isso tudo é um desafio soberbo das leis da física e eu sou só mais um rato de laboratório.

O sistema de propulsão acelera a uma taxa constante na primeira metade da viagem e depois, vira ao contrário e desacelera na segunda metade, de modo que a nave chega ao destino quase estacionária em relação ao ponto de partida. Eu sempre me perguntei como essa presepada deve parecer do lado de fora, no outro referencial; deve ser hilário ver como a Lampião estanca e passa milênios andando cada vez mais devagar. MARI me disse que seria decepcionante, mas tenho minhas dúvidas.

Os computadores da MARI calculavam a aceleração apropriada, traçavam as rotas mais seguras, me acordavam da criogenia quando precisavam ou quando eu tinha programado. Com essa aceleração, há a vantagem adicional de se produzir “gravidade” artificial para a tripulação, uma sensação de peso que te puxa na direção do motor e previne os malefícios da micro-gravidade, porque a Lampião foi construída no estilo torre de escritório, com todos os decks empilhados uns sobre os outros e o “chão” sendo no rumo do motor. Fácil de andar, até, dependendo do quanto você tem de velcro e/ou ímãs; só que essa semi-equivalência da força gravitacional é de contato de superfícies e quanto maiores as forças-g, mais difícil ficar acordado, e, se cortarmos a aceleração, eu fico flutuando em queda-livre. Era um balanço cuidadoso de ferramentas e engrenagens experimentais, caras e voláteis.

O engraçado é que, ao se obter aceleração constante a 1 g, a gente consegue quebrar a dilatação do tempo usual. O problema são pontos de referência diferentes por definição, pra quem está na nave o tempo passa mais devagar em comparação a quem está na Terra, por exemplo. Supondo uma aceleração constante de 1 g, um foguete desses poderia cruzar o diâmetro da Via Láctea inteira em cerca de 12 anos no tempo de nave, mas isso custaria cerca de 113.000 anos de tempo planetário, tipo o da Terra. Eu já passei disso há muito tempo.

Consequentemente, uma aceleração de 1 g permitiria aos humanos viajar por praticamente todo o Universo conhecido em apenas uma meia vida humana. Ou seja, cerca de 90 anos. Porém, de novo, a pegadinha é que se passariam noventa anos só pra quem estivesse dentro da nave à 1g… Quem ficaria de fora, veria o fim do universo acontecer antes disso. As percepções do tempo ficam meio confusas quando você se mete com relatividade. E é pra lá que eu quero ir: as fronteiras desconhecidas do fim do universo.

Qualquer coisinha me impacta com facilidade. Qualquer história levemente de terror me impressiona e rouba meu sono. E estou vagando entre duas instâncias: a ida e a jornada. Havia algo ali, segundos antes de zarpar, naquela despedida, aquela fuga, uma mudança, indo embora, partindo para certamente nunca mais voltar — algo visceral e primitivo e animalesco, uma morte do ego, que implorava por arrancar, apesar do sangue e do calor, os grampos em suas asas e voar, uma última vez, nem que seja ineficiente e fatal, mas voar e, enfim, despencar rumo ao abismo.

Era um tipo de esquecimento. Um esquecimento diferente. O esquecimento pleno do eu e do outro que simplesmente aterroriza qualquer ser pensante, eu acho. Uma repetição por essência, uma conversa batida, um pleonasmo. Não dá medo aquela noção antiquada de se perder as capacidades cognitivas para alguma doença degenerativa incurável, tornando as tuas memórias preciosas em espelhos circunlóquios opacos e sem sentido? Isso genuinamente me apavora. Por quê? Porque minhas lembranças são a última coisa de valor que ainda tenho, minha mente é a única parte do meu corpo que não odeio e pela qual realmente prezo, realmente treino e gosto de exercitar, e realmente admiro. Dá pra imaginar tanto esquecimento em um altar assim? Se perco meu aparelho cognitivo, não quero mais estar vivo. Não quero ver a tela da pintura virada de costas pra mim — num rosto retorcido e irreconhecível, desenhos pra sempre abstratos e ilegíveis e infantis –, nem desejo ouvir o verdadeiro silêncio ancestral. Não quero uma coleção de fotos de rostos sem face, inexpressivos e enigmáticos, em feriados e festividades que eu não lembro de ter participado, guardados dentro de um álbum de couro batido que eu não lembro de ter trazido comigo.

Há algo naquele instante, há algo nessas memórias. Quero sempre lembrar desse medo e arrependimento que eu sentia, ali, um peso nas ancas, quando o foguete decola. E também agora, quando já não tem mais volta. Quero para sempre reconhecer a curva daquela praia.

Pois eu sinto falta do cheiro das frutas frescas, do som monstruoso das ondas vasqueiras do mar e das esbranquiçadas linhas curvadas do anel-disco natural do meu planeta natal, aquele arco-íris gigante de tons azuis monocromáticos varando as nuvens onipresentes. Hoje em dia, tem pessoal que só via o que era isso pela ficção escapista, mas eu tinha vagas memórias do peso das coisas. E como faz falta o peso das coisas. Ainda mais o peso certo das coisas. Como dá saudade pular e sentir o chão te puxar de volta. Sentir a areia daquela praia enxerida invadir minhas roupas. Não há lugar como o lar, a cidade natal, a sensação confortável de pertencimento pleno que um bairro familiar e rostos amigáveis e parentes saudosos te dão.

Pois estou lá. Estou lá neste exato momento. Estou naquele areal sinuoso do litoral nordestino, na casa de verão herdada da minha família, sentindo os grãos infinitos da areia amarela se infiltrando entre o interior dos meus dedos dos pés, vendo a espuma do mar dobrar de tamanho e escorregar até banhar a ponta da minha unha com sargaço. Há uma pinta de tinta branca no meu dedão. Mãe gargalha no pé do meu ouvido e diz que vai precisar de outra foto. Pai fica mais emburrado ainda, mas obedece. Eu obedeço contra minha vontade também. O flash implode na retina e cansa a vista. Eu bocejo, minhas pálpebras pesam, o sono bate e não resisto. Pisco os olhos só uma vez.

Estou no último dia da mudança. Pintando um muro de cimento áspero e espinhoso com um pincel pequeno demais. Dedico minhas últimas forças em cuidar desse lugar e deixá-lo apresentável não só porque sou obrigado por contrato, mas porque quero que ele continue uma história de acolhimento. Tomo esse cuidado, limpo os cantos, retoco aqui e acolá, deixo tudo nos trinques. E viro massa de modelar, ácido e carbono vaporizando em espirais de matéria sem nome e valor, quebrando sobre si e abrindo espaço para outras iterações daquela criatura sem forma, mas física, sem cheiro, mas com choro, algo novo e não tão diferente, algo reluzente e ao mesmo tempo puído. Algo condoído e mecânico ou fadado ao revertério.

O desdém do tempo e a cartada final da biologia. É isso, é a evidência de que o ser humano está definitivamente enjaulado em suas condições materiais e físicas, que está por essência fora de controle, sozinho nessa aposta cósmica: nessa insatisfação convivendo com tamanha indiferença. Como é possível comprovar minha existência se eu não me recordo de existir? A gente tende a esquecer, às vezes, que nossa habilidade de conceber o real só é mantida por uma frágil teia nervosa, sinais elétricos e químicos, sinapses infinitamente microscópicas e frenéticas, protegidas por uma fina placa de colágeno e cartilagem penetrável. Um crânio, uma abóbada facilmente violável. Não só por fora, há de fato uma linha que separa tudo do nada. Por isso eu me resigno a essa forma palpável e infelizmente concreta. Estou separado por concepções temporais diferentes.

Acordo da criogenia outra vez. A Lampião dispara pelo universo e a janela expõe moção hiperbólica. Estamos na região escura entre superaglomerados de galáxias, talvez. Tento recordar algo de como era o mundo antes disso, mas tudo parece cada vez mais barulhento e gritante e eu continuo desconfortável e com medo e preso fincado nesse denso, nojento e congelante poço de cimento viscoso, temperado com os dias bons e os ruins que passam com pressa pelo retrovisor deste meu carro apertado em movimento acelerando rumo ao fim da estrada num precipício.

Serei eternamente grato pelos presentes que a língua portuguesa me concedeu e, dentre eles, a palavra “saudade” é a pedra mais preciosa e cristalina. Não há uma tradução singular para o inglês e para outros vários idiomas e nada é capaz de cobrir todos os seus sentidos possíveis: desejar nostalgicamente um tempo passado mais simples poderia ser um equivalente, mas existe outra palavra para ‘sentir falta de algo que você não consegue precisamente identificar’? Ou ‘ansiar por aquilo que não aconteceu de fato’? Ou ‘se afogar na melancolia e ainda assim gostar da ausência’? Ou ‘não ser capaz de esquecer completamente’? Não sei, provavelmente há, eu não pensei muito sobre isso, e talvez eu esteja enviesado pelo português ser minha língua natal, mas… Enfim, quando sento e penso e tento decifrar o que sinto nessa palavra, não consigo encontrar outro equivalente.

Pois minha doença degenerativa é essa, é sonhar com o amor da minha vida por duas vezes diferentes na mesma noite e não se recordar de nada além da sensação de paz e felicidade que me cercava ali, no momento enrolado que eu despertava grogue de sono e não tinha certeza se aquilo, se ela ali comigo, se aquela história toda nublada e confusa era algo real ou não. Eu rebobinava, rebobinava, rebobinava. E eu tentei, eu juro que tentei melhorar. Confesso que me esforcei pra lutar contra esses súbitos pensamentos traiçoeiros e me preocupar só com responsabilidades ou as mini tarefas mais supérfluas dessa mudança toda mesmo quando tudo o que eu queria era só apodrecer na cama debaixo de mil almofadas e desistir de mim — se eu pudesse fazer isso sem ter de machucar mais alguém que amo, mas não tenho poder aquisitivo suficiente para as regalias que derivam disso. Não posso me permitir, não posso me dar o luxo de fazer isso.

O recorrente ganido desse lembrete cósmico me impossibilitou de ser um menino desconectado por completo, por mais que essa fosse a minha aspiração tempos atrás quando o que eu mais queria era cristalizar a ideia de que nada faz sentido e eu não me importo com nada, os comportamentos autodestrutivos baseados em auto isolação e uma interpretação equivocada de alguma filosofia escolar pseudoniilista. Mas a vida… — essa entidade poética que os desesperados recorrem para compreender a aleatoriedade sem propósito de tudo –, a vida sempre dá um jeito de te mostrar que ela vale a pena e que é só uma questão de tempo até tu entender isso, quando ela te esbofetear com uma verdade ou um neologismo propício e metafórico, e tu mesmo se perceber parte desse mundo desigual e que ser participante ativo dele é atravessar descalço pelas dores, as pedras pontudas, pela brasa das injustiças e as fragilidades até tudo parecer excessivo, demasiado obsceno e, ainda por cima, tudo de uma vez.

Tantas saudades ao mesmo tempo. Tanto medo simultâneo com tanta variação. Tanta covardia. Tantos erros. Tantos pedidos de perdão. Tanta oração. Tanta culpa, vontade, frustração, tanta solidão auto imposta ou merecida que a impossibilidade de ser quem eu sou ao redor de tantos outros pressente que não há mais o que fazer ou ser dito. Resta deixar as coisas tristes pra depois e deixar meus sonhos para a outra vida. Quem sabe em outra vida…

Lembro da última semana. A avalanche de acontecimentos que sedimentaram minha decisão, mas aí é que tá: eu não consigo articular e encontrar as palavras que preciso pra descrever a frustração que me arrebatava naquelas madrugadas frígidas e sem intercorrências quando meus planos deram errado e, apesar da juventude, eu queria tudo imediatamente senão de que vale continuar andando nessa porcaria aqui. Eu só tinha uma chance e, naquele momento, do nada, ela tinha ido embora. Então… eu me ocupava com banalidades amenas, entretenimento barato e ciclos de engajamento digital artificial, deprimido, debaixo do cobertor, debaixo de qualquer coisa que mantivesse minha mente distraída. Porque minha sombra bate à porta agora, chama pelo meu nome, é a hora de pagar por bater a cabeça contra esse muro alto e grosso e protegido por cacos de vidro.

Repito o mantra. “Fica para outra vida, a próxima vida, onde meus objetivos são atingidos, onde não cometo tantos erros e onde não me contento com o infortúnio. Enquanto isso, faço o que for possível dessa vida daqui, enquanto ainda posso — enquanto ainda respiro”. É isso, né? Ninguém mais vai acreditar e trabalhar pelo teu sonho além de ti mesmo.

Num dia eu ardi em febre por reação à dose de reforço de alguma vacina e, no outro, no silêncio noturno, faço de tudo pra engolir o choro. Não posso. Não vou dar a eles esse gosto de vitória e de justeza, não vou deixar que me escutem assim fraco, nem que seja abafado, nem que seja só por um segundo. O corpo dói, a alma já não se faz presente, meu eu desaparece, no lugar dele sobra uma semente; e minhas vísceras, antes vermelhas e viças, endurecem.

Mais um resultado com mais uma derrota, e uma perda definitiva do último elo conectivo possível a esse chão, essa gravidade, esse piscar de olhos ínfimo no escopo do universo. Rompe a corrente do fio da minha chance de continuar morando aqui, onde não nasci e não pertenço, longe de quem me ama, onde todo mundo duvidou que eu fosse prosperar. E eu quis provar que eles tavam errados e eu quis que meu nome tivesse importância e eu quis dar orgulho e conforto pros meus pais e eu quis, eu quis, eu quis… E agora não tem jeito, vou embora. Vou deixar pra trás quem conheci e amei e caminhei e chorei e compartilhei e escutei. Mais uma vez. Uma última vez, talvez.

Lembro da nossa última conversa. Nossa última conversa se encerrou de um modo comovente e propício, roteirizado, estruturado, símbolo de nosso relacionamento inteiro. Nos encontramos, conversamos em um quarto escuro até o assunto morrer, e o silêncio frio repousar entre nós como um bicho carente incomodando pedindo atenção. Fumamos alguns cigarros, ouvimos rock antiquado, expondo nossos medos e nossas esperanças — você mais do que eu, mas isso não me machucava. Você sempre era o mais falador em nossas reuniões filosóficas, fofoqueiras e argumentativas.

Você me contou de como doía continuar num lugar que não te quer. Um lugar de ricos, de outra estirpe, outra realidade, outra visão. Nós nos sentimos como estrangeiros em nosso próprio chão, refugiados, isolados, outros. Enquanto eles compravam o original e caro, nós barganhávamos pela versão pirateada. E vivemos dessa forma tosca, pedindo emprestado nosso tempo na terra. Você me disse que era assim mesmo, que aqueles lugares não foram feitos pra nós, porque nós éramos ratos, nosso trabalho era infiltrar, roubar o máximo que conseguíssemos, estufar nossos bolsos, e ir embora. Éramos catadores, necrófagos, carniceiros. Soltamos nossas despedimos cordiais e comuns, prometendo nos encontrarmos mais tarde, quem sabe, no outro dia, fica pra depois, “vamos marcar!”. Sem saber que aquela seria nossa última vez juntos; ou, na verdade, sabendo sim que não nos veríamos mais, mas só não admitindo em voz alta, como se admitir tornasse real e, como sempre, nós estávamos burlando as regras, querendo ir onde não nos era permitido.

E agora… O que me encontrará lá? Quais novidades virão? Por onde bate o chão pisoteado, qual trilha será percorrida? Preparei minha viagem juntando tudo numa sacola média como um peregrino seringueiro na bússola do ouro de seiva querendo extrair do verde uma riqueza que faça tudo valer a pena. E foi só ali, na despedida, que eu suspiro. E eu me solto. Deixo ir embora o que tem de ir embora, exijo que saia o que teme a luz do sol, expulso isso tudo, à força, se for preciso. E recebo de braços abertos com um sorriso afável o que precisa entrar pela porta da frente.

É longa e sinuosa a estrada até a nossa cura, viu? Um dia, quem sabe, a gente chega lá.

A esse ponto, estou testemunhando bilhões de anos em alguns segundos. Meu céu é repleto de pequenas estrelas esvoaçantes, findando em supernovas chamativas e erupções de raios gama expelindo galáxias inteiras, explodindo como fogos, artifício que implode e explode e vira do avesso, uma casa de espelhos e vidros psicodélicos e exagerados, se engolindo e refletindo o arco-íris. Lá, eu vejo tudo: a Via Láctea é finalmente absorvida por Andrômeda. Vertigem cósmica. Eu durmo e acordo e agora trilhões de anos passam pela janela, voando e voando, MARI analisa detalhe por detalhe. Aglomerados de galáxias engolidos por seus buracos negros supermassivos centrais. Vertigem cósmica. Constelações que aumentam e se expandem e queimam e evaporam tudo aos seus arredores, até crescerem ao máximo e morrerem de frio, enfim. Vertigem cósmica. Todas elas viram anãs-brancas, um cadáver estelar, quente, denso, mas encolhido e não mais tão brilhante. Eventualmente, toda estrela morre. Vertigem cósmica. O céu noturno desliga, uma por uma, sem combustível, em silêncio gelado, em cinzas de um fogo que jamais queimará novamente.

Neste cemitério dos cosmos, antes da última fulgura sideral apagar e a era da luz estelar acabar, a Lampião vai desacelerando. Esse é o meu ponto de chegada, a adolescência do universo. É meio desconcertante perceber que uma coisa assim tão monumental vai passar boa parte de sua vida adulta ali, num vazio escuro e frio e fantasmagórico cheio de corpos celestes moribundos e buracos negros devorando tudo, em meio a expansão isolacionista do espaço-tempo e a decadência dos prótons e as raras colisões de anãs-marrons e estrelas de nêutrons, através da matéria evaporando em radiação, escorrendo pelo ralo congelante, implodindo e esmorecendo feito tochas de chamas oscilantes. Aqui, MARI finalmente triangula ela: a estrela derradeira.

Pisco os olhos e estou plantado em nosso último dia. Lembro dos sentimentos que me abarrotavam naquela manhã fria, como sempre. Tenho uma recaída e reconheço, reinterpreto, ressignifico ou só descubro o que aquilo queria realmente ser. O que importa é que eu não disse adeus. Me despedi de ti com silêncio distante, encarei teus olhos brilhantes, grandes e carentes, tentei dizer alguma coisa que fizesse sentido, mas não saiu nada.

Porém… Eu quis deixar tudo arrumado para que tu lembrasse com carinho de mim, para que me imaginasse como alguém organizado e seguro de si pelo menos uma última vez. Tentei lavar, secar, estender, passar o ferro, dobrar e guardar essas roupas limpas perfumadas por amaciantes florais em seus devidos lugares na minha arara capenga. Também tentei varrer e passar pano e o aspirador consecutivamente com um ânimo sobre-humano, tentei desempoeirar minhas prateleiras e a mesa de trabalho abarrotada, quis realinhar meus livros velhos um por um e redistribuir nossos discos de vinil, tentei trocar a areia do gato e deixar água e ração estocada por um bom tempo, e substituir a colcha e a roupa de cama bagunçada, e tirar o lixo acumulado, e carregar os aparelhos eletrônicos e melhorar o gerenciamento dos cabos — aquela massa de enguias se alimentando em forma de fios rebeldes — e quis pendurar nossas fotografias apenas em simetria, consertar porta-retratos e expô-los com orgulho na escrivaninha, e catar meus fios de cabelo nos cantos e esconder meus remédios e até reabastecer os perfumes. E tentei escrever-te uma carta, tentei poupar-te o trabalho de escolher as palavras e os objetos pro descarte, pois almejei a esterilidade plena e bonita e lisa e felizmente impecável de como aquele quarto ficaria vazio; e quis que me recordares assim tão delicado e nem um pouco enfadonho ou disruptivo. Mesmo assim, se algo me passou despercebido, tentei pedir desculpas, quis ser feliz. E, embora eu não tenha conseguido, há um frágil conforto em saber que sem dúvida, inequivocamente, pelo menos, com certeza… eu tentei. E eu quis.

Eu não sei o que eu esperava no fim do universo, mas com certeza absoluta não era o céu de trás pra frente. Não… Para com isso! Aqui ainda é lugar o bastante. É só o que eu tenho, mas pelo menos é alguma coisa. De repente, estou diretamente ciente de minha própria existência, lembro de mim mesmo, e meu corpo ali em pé, meus braços pendurados, a moção do diafragma inflando e contraindo.
Visto meu traje de Atividade Extra-Veicular para suportar o espaço exterior. Olho para a janela outra vez e ela ainda está lá. Uma última estrela, uma anã-vermelha débil, um nó magérrimo em meio a paisagem sideral deserta, queimando as últimas reservas de hidrogênio, rodeada por quatro anéis escuros abafando o fogo baço, circulando aquela chama branca e frágil como abutres sobre carne podre, turva, toldada, na órbita da derradeira fonte de calor e vida. Quem construiu isso? Quem chegou até aqui? Será que sobrou alguém dessa civilização? MARI identificou uma baía de ancoragem para a Lampião, mas não temos nenhum sinal de vida ou mensagem automática. Só me resta visitar o anel central, é o que ainda tem uma assinatura de energia significativa, então eu respiro fundo, coloco meu capacete, verifico o lacre das extremidades, checo as treliças, faço um último teste, abaixo o visor dourado e pressiono o botão de despressurização da Eclusa de Ar. O esturro de vento expele e troca de atmosfera. É agora ou nunca.

VERTIGEM CÓSMICA: doença neuropsicótica estimulada pelo isolamento absoluto de longas viagens interestelares. Sintomas: rompantes de raiva, episódios de desrealização e despersonalização, acúmulo de estresse e hipoatividade no lobo parietal de modo geral. Culminam na dificuldade de discernir o real e a experiência subjetiva, ou seja, alucinações e delírios. Tratamento: ?.

HIPÓTESE: Enquanto encaro o cano frontal da arma de um vazio céu, estrelas brilham extra intensamente nos meus periféricos. Não pois tímidas se escondem, mas porque ficam ainda mais lindas. Resmungantes pássaros nos sobrevoam fugindo dos fogos de artifício que tudo apartavam, e eu quase fui embora de fininho. Fiquei por causa das cores que nunca vi antes (e as inventadas na hora). Eu vi constelações e escuridão dançando de costas e vendados e fui tomado pela suave compreensão — uma familiar sensação repentina — de minha pequenez absoluta e devastadora.

COROLÁRIO: A vastidão do espaço para seu vazio, sua insignificância, me clamou; e eu lhe perguntei “É isso? Isso é tudo que posso fazer? Tudo que vou ser?”. E ele me respondeu com um comentário sardônico e repetitivo sobre esperança, sobre viver um dia após o outro, sobre guardar o instante agora. Confesso que me deu vontade de rir na cara de um pensamento tão positivo e inocente e repetitivo, mas então entendi. Comida caseira reconfortante que servimos a nós mesmos e que, não importa o quanto desistir faça sentido, a gente ainda tem tempo a perder em uma busca eterna por quietude, alegria, camaradagem; tudo isso disfarçado, mas é exatamente a mesma coisa: uma afirmação de propósito, de significado.

SÍNTESE: E até eu, lanhado de maus tratos passados e presentes, insistindo pelas provações e tribulações de tentar ser alguém nessa terra injusta, respirar finalmente o meu último suspiro de ar angustiado, que isso seja sabido por aqueles que toquei e aqueles que me tocaram: muito obrigado por continuarem aqui por tanto, tanto tempo (apesar dos meus inúmeros esforços de expulsá-los do peito). Para sempre hei de valorizar o afeto que vocês introduziram em minha vida e, por isso, hei de seguir até o fim amando todos vocês com beleza e serenidade.

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íris

alguns contos de ficção científica com poesia de quinta categoria e outras baboseiras